terça-feira, 12 de fevereiro de 2008

O CARA PINTADA


Acorda Cara Pintada!

Todos os dias o cara pintada acorda com o sonho de transformar o mundo. Acredita fielmente que pode mudar as pessoas que o cerca e que a vida perecerá sob justiça.
Por onde passa tem o olhar crítico. Veemente em suas convicções não aceita facilmente as coisas que a vida lhe impõe.
Nas ruas, não se conforma com o mendigo que dorme debaixo da goteira do suntuoso e superfaturado viaduto. Fica pasmo com os pedintes que de carro em carro lutam pelo ganha pão. Enfurece-se ainda mais quanto são crianças, manipuladas feito fantoches obrigadas a exibirem um falso e falho sorriso amarelado, à medida que jogam bolinhas coloridas ao alto, com a simples intenção de ganhar a atenção do motorista que de cara fechada sobe o vidro elétrico de seu blindado automóvel.
Cara Pintada no seu serviço não se submete as ordens do seu chefe, as discute , quer o que seja melhor a ambas as partes. Questiona, barganha, briga, enlouquece. Quando consegue o que quer, festeja, mas quando é contrariado se enfurece e de cara feia permanece o resto do expediente.
Critica a hierarquia, acredita que democracia é a palavra da vez. Sonha no dia em que as pessoas serão iguais, e que todos, sem exceção, serão tratados da mesma forma: sem graus, distintivos, valores diferenciados e salários tão desiguais.
No dia em que as pessoas não mais serão chamadas de: “RG, CPF, PIS/PASSEP”; entre outros códigos de barra. Assim como os bois: marcados para não fugirem do pasto, controlados de forma rígida pelos fazendeiros gordos, que os engordam todos os dias com a clara intenção de usufruir de seus corpos. Como a historinha infantil, onde a bruxa exuberante ri ao inchar o pobre garotinho preso em uma gaiola.
Na refeição, não sabe mais o que é pior, comer junto aos funcionários do seu departamento sabendo das conversas vazias, onde o assunto mais conflituoso é quem ganhará o reality show. Ou, saciar um bobó de camarão no restaurante típico no centro da cidade, onde novamente um pedinte separado dele apenas por uma fina camada de vidro, o afrontará, estendendo-lhe a mão com um olhar de súplica, implorando por ajuda.
- Isto é um roubo! – Grita Cara Pintada.
- Mais senhor, este é preço que o gerente colocou – explica o tímido frentista.
- Mas isto não deixa de ser um roubo! Finaliza enfurecido Cara Pintada.
Não se conforma com o inflacionário aumento no preso da gasolina e do álcool. Já não sabe mais se tinha valido a pena ter investido um pouco mais no carro “flex” adquirido. Talvez fosse melhor colocar a gás - pensava.
Em casa enfrenta o pai, acha que o mesmo não pode preteri-lo em relação ao irmão mais novo. Que o fator idade não deve ser o motivo para não mais ganhar a generosa mesada. Briga pelo controle remoto, pela ordem na fila na hora de tomar banho, pela camisa mal passada, pelo cachorro peludo que o persegue a todo o momento, e pela escolha do cardápio do dia. Sai de casa chutando a porta sem dar pelota à mãe, que carinhosamente lhe estende um prato de comida. Prefere comer um lanche no “fast-food” com os amigos, afinal eles o entendem – verbaliza.
Cara Pintada não agüenta mais tanta injustiça. Não entende porque a vida não é simples. Porque o amor não é natural e porque as pessoas passam a vida a procura da “Alma Gêmea” e nunca encontram. Por que menos de 1% da população é dona das maiores riquezas do mundo. O porquê as greves e os que não fazem greves. Do trânsito e dos que não possuem carro. Não entende a fome, a desigualdade social, o analfabetismo e a ignorância do mundo.
Cara pintada não aceita a vida e desconta toda a sua raiva nos amigos, nas famílias, nos colegas de escritórios, na galera da faculdade, na garçonete, no atendente, novamente no frentista, no barman, no terapeuta que o esperançosamente o seu pai insiste em pagar.
Sai pela rua com tanto ódio sem perceber o vermelho cintilando a sua frente.
Acorda Cara Pintada! – grita o Camarão sentado ao seu lado no carro preto rebaixado.

II

Cara Pintada acorda todas as manhãs sem a pretensão de transformar o mundo. Sabe que as grandes mudanças não acontecem por acaso e nem tudo depende dele.
A palavra fé foi atribuída a sua vida, hoje acredita num mundo diferente.
Ele acorda sem pressa. Tranquilamente toma seu café, em seguida sai a passear pelas ruas do seu bairro. Consegue perceber com outro olhar os transeuntes que desfilam e olham para ele com compaixão.
Ele não mais critica, nem tão pouco possui a ansiedade de antigamente. Não pensa a todo o momento em acertar e aceita que não veio nesta vida para fazer as coisas certas o tempo inteiro, mas que o bem, se empregado deve ser verdadeiro.
Como um pequeno bonsai que se desdobra ao sol, Cara Pintada hoje passa o dia a admirar o céu. Chega a passar horas observando o esverdeado beija-flor que salpica de um copo de leite ao outro, como se sambasse no ar.
Nos finais de semana divide seu tempo em ministrar aulas de informática para crianças de um orfanato, ou ficar com sua mãe na cozinha, seu passatempo predileto. Nos últimos meses tem aprendido todas as misteriosas receitas de família. Às vezes aparece com uma receita tirada da internet exibindo a foto de como ficará o prato finalizado.
Em todas as suas novas aventuras ele é acompanhado por “Gigante”, seu amigo, irmão, pai. Gigante é a pessoa mais próxima de Cara Pintada. Gigante são as pernas de Cara Pintada, as mesmas que ficaram atrofiadas após o acidente de carro que teve com seu amigo camarão, que não sobreviveu.
Cara Pintada Acordou! Viu que seu discurso não condizia com suas ações. E que não bastava querer mudar o mundo se ele não se mobilizava internamente.
Descobriu o verdadeiro significado de MEDIOCRIDADE e percebeu que mediano mesmo era as suas criticas: vazias e egocêntricas.
Hoje Cara Pintada está aberto a novos sonhos e conquistas, ciente de que ele é uma peça importante nas transformações do mundo, mas que não é o único. Que para alçar novos vôos mais do que nunca precisará da ajuda do outro, seja ele o gigante ou qualquer outro. E para isso deverá acima de tudo respeitar a opinião daqueles que o cercam.
Cara Pintada acordou e se envergonhou. Finalmente retirou a maquilagem falsificada de comunista de filmes “Hollywoodiano” e postou-se diante da vida.